sábado, 26 de março de 2011

Quadro torto



Não sei a hora ao certo, mas lembro-me de já estar dormindo, o livro do lado com uma folha amassada por eu ter desmaiado em cima dele, ouvi três batidas, três vezes, então foram nove batidas, insistência de entrar na minha casa ao quadrado. Ainda um pouco zonza do projeto de sonho que estava tendo, cambaleei até a porta, não procurei saber quem era, pois já sabia, das poucas coisas que eu tinha certeza, quem batera a minha porta era uma delas! Pela hora. Pela sombra na porta. Abri e disse que entrasse, ofereci água, era só o que tinha. Parecia estar ofegante, mas era só impressão minha, havia pego um táxi e caminhado só até a minha porta, nem dez passos sequer.



A verdade é que a água era uma desculpa, a água não, o copo, uma desculpa para ocupar as mãos quase que esquizofrênicas, já que o único bolso estava ocupado por uma carteira de cigarros, a solução seria segurar o copo. Pedi para que não trancasse a porta, só a encostasse, mas depois mudei de ideia e pedi para que a deixasse entreaberta por causa do calor, e porque eu não ia abrir as janelas àquela hora.


Depois de trazer-lhe o copo, cumprimentei com um beijo na testa e a mão no pescoço, como de costume quando só eu estava de pé, sentei-me ao lado e pedi para que fossemos direto o “X” daquela visita que ocupava meu sofá de dois lugares e atrapalhou meu projeto de sonho.



Entrou um vento frio pela porta entreaberta, resolvi fechá-la e no caminho de volta, liguei quase sem volume o rádio de pilha da sala, não me lembro o que tocou inicialmente. Não, não fomos direto ao “X”, nem sequer chegamos ao A, os móveis da casa eram mais interessantes de serem encarados que nossos próprios rostos, e a primeira frase que ouvi foi: O quadro está torto ou é impressão minha? E respondi automaticamente: O quadro e a minha vida! E mais uma vez o silêncio tomou a sala.



Resolvi abrir um lado da janela, já que só fazíamos olhar para cima, preferia olhar um pedaço pequeno de céu ao teto desprezível e infiltrado da minha casa.


Infelizmente eu não tinha nenhum daquele “Elixir da verdade” em meu armário, mal tinha comida, quanto mais elixir. Mas verdades eu tinha, eu tinha tantas, aos montes, desciam embolando pior que avalanche na minha língua, mas quando chegava à ponta, a boca fechava e a cabeça balançava negando-se a falar. Então começamos a cantarolar a música que começou a tocar, acredito que foi o único momento em que trocamos palavras que condiziam com o que o outro havia dito, no mais era um revezamento de monólogos curtos, lembro que o refrão dizia “amanhã é longe de mais pra quem não tem a eternidade”. E eu me dobrando por dentro, mais que origami, para não gritar desesperadamente pedindo pra que dissesse qual o motivo daquela visita, além fazer comentários sobre meus móveis velhos e o quadro torto.



Então questionei, e nada. Fui questionada com meu próprio questionamento, respondi parcialmente, não sei se para proteger a face, ou por pirraça, porque orgulho, eu já não tenho faz tempo. Parecia uma maratona de olhares, suspiros, barulhos estranhos, frases internas que só saiam pela metade, ou nem saiam. E em um consenso, nessa comunicação de olhares, mudamos de assunto, já que não conseguíamos ser diretos, usaríamos o que tinha nos levado até ali, as indiretas, as metáforas, as ironias.



Deitamos, e desta vez sem copo, trocamos alguns dedos de sinais, fui direto a um dos pontos em questão, e recebi a primeira resposta: Não! Ficamos ali, as gargalhadas começaram a surgir, sinal de que aquilo teria que acabar por ali, terminar ao menos sorrindo, só com uma resposta esclarecedora no bolso. Sim, aquilo tinha que acabar, ali, não em outro lugar, de vez, conclui. Repetia em silêncio a mesma parte da música “amanhã é longe demais...”, até que decidiu levantar-se do sofá e ir embora, argumentando que estava cedo demais, era seis da manhã. Concordei, de certo, seis da manhã é bastante cedo quando se bate na porta de alguém as duas e quarenta e seis da madrugada, e rimos pela última vez, rimos pela última vez naquela situação, só não conseguíamos rir da situação, rimos nem sei mais porquê.


E disse, é... Eu tenho mesmo de ir! E eu mais uma vez no ápice do automatismo das respostas, sem filtro algum entre o pensar e o falar, despejei de uma vez só... Vai, mas vê se não esqueceste nada para não ter mais uma desculpa para voltares, não olha para a janela quando tiveres tomando teu rumo pensando que eu estarei olhando os passos que tu darás em direção ao ponto do táxi, porque eu já estarei deitada tentando terminar meu sonho interrompido. Vai, mas antes de tudo deixa a chave que eu te dei em cima da escrivaninha, porque se não quisesses devolver não terias batido nove vezes na minha porta, teria entrado e me acordado, mesmo que me assustasse, seria mais esclarecedor, e bate a porta para eu saber que você saiu de verdade, ah, não te sentes no tapete da porta da frente quando saíres, ele está sujo e eu não abrirei a porta novamente para te limpares. Até abriria, mas cansei de me esforçar para abrir o trinco da porta sempre emperrada, para não ouvir nada, e sim, dorme bem, meu bem.



Acordei duas horas depois e vi que não tinha recebido visita alguma, todo aquele X, porta entreaberta, era o tal projeto de sonho, metalinguagem do sonho, a única coisa verdadeira era o quadro e a minha vida permanentemente tortos.


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